quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Nós vimos a banda passar...

Vinte e sete anos de história chegam ao fim. Algumas horas atrás o último músico da - agora extinta - Banda Sinfônica do Estado de São Paulo (BSESP) acaba de sair do Teatro Caetano de Campos após assinar seu desligamento. Os amigos despediram-se uns dos outros, da equipe técnica e do Maestro; tristes, mas de cabeça erguida.  

Desde o ano passado, quando receberam as primeiras notícias de um desmantelamento, todos os músicos vêm batalhando arduamente para tentar salvar esse importante pedaço da trama cultural brasileira com campanhas e ações diversas, mas fazendo principalmente o que sabem melhor, a arte que treinaram e desenvolveram, diariamente, durante toda uma vida.
Os concertos de protesto demostraram que mesmo na adversidade o trabalho do músico é dedicado ao público. O refinamento desse artesanato não deve ser confundido com mero entretenimento; é a arte que resiste a provocação do tempo e demanda esforço para se executar.  Qualquer pesquisa e comprovação científica moderna apenas demonstra no papel o que qualquer pessoa é capaz de compreender. Música é ensinamento, inteligência, desenvolvimento, conhecimento, emoção, medicamento, história e evolução.
Grande lar dos instrumentistas de sopros, as bandas surgiram de forma orgânica e se espalham pelo país, sua história sempre interligada com narrativa de sua cidade. Atualmente essa formação é a que gera o maior número de composições sinfônicas inéditas, sendo responsável também por garantir postos profissionais que suprem a demanda de músicos. Muitas vezes são essas bandas uma das poucas opções de difusão cultural de cidades pequenas.
A BSESP representava o ponto mais desenvolvido dessa tradição,  para músicos jovens era um dos destinos da carreira profissional e, para as bandas já profissionais, era um dos exemplos e grande representante do repertório.  O grupo conseguiu respeito internacional ao ser convidado mais de uma vez para as conferencias da World Association for Symphonic Bands and Ensembles, na Áustria.  
A música produzida pela e para a Banda diversificava com excelência a gama de opções do público paulista. A escolha entre grupos sinfônicos tradicionais, montagens de ópera, concertos de música popular ou coral era enriquecida pela sonoridade única que caracteriza essa formação singular. O repertório nacional está empobrecido sem um de seus patronos, e cada vez mais a população perde em seleção, na possibilidade de diferentes apreciações. Estamos prejudicados pelo afunilamento da pluralidade cultural.
Todos que tiveram a sorte de crescer cercados pela oportunidade de vivenciar a manifestação artística sabem (mesmo que no subconsciente) a importância dessa observação para o seu desenvolvimento crítico e intelectual. É assustador pensar que, são exatamente pessoas educadas e nutridas pela música, que gozam da elocução necessária para destilar o discurso verborrágico e vilipendioso que subjuga qualquer expressão artística. Efetivamente convencendo outros de que o músico é dispensável.
Estamos negando a um número enorme de pessoas, pouco a pouco, as mesmas oportunidades de desenvolvimento intelectual que tivemos, uma manobra vil de domínio civil. Seguindo essa mentalidade a verba da secretária de cultura é o primeiro alvo de cortes, nunca os supersalários de funcionários, nunca as verbas de manutenção e propaganda da máquina pública e seus prédios de dimensões e serviços nababescos e definitivamente nunca o orçamento do verdadeiro entretenimento banal – pão e circo. Muitas áreas para as quais o orçamento é destinado não sofreriam impacto algum se a pequena verba necessária para manter grupos como a BSESP fosse realocado.  Mas o interesse político ainda dita as regras da economia brasileira.
Precisamos de um trabalho árduo e contínuo, a vida obriga o músico a ser muito mais. Recentemente em um texto, o Maestro Abel Rocha nos lembra da importância de sermos especialistas não apenas em música, mas também em direito, administração, gestão publica, retórica, empreendedorismo e outras áreas. Pois uma classe inteira ainda carrega a falsa alcunha de “vagabundos”. Não podemos esperar tempos, como os atuais, de adversidade e luto para mobilização. As circunstancias nos obrigam a lutar diariamente pelo reconhecimento da amplitude dos serviços que prestamos. A Banda acaba, mas a luta continua.
Muitos outros órgãos ainda correm o sério risco de extinção. Mesmo a OSESP, que provavelmente usufrui do maior renome que uma orquestra no Brasil pode ter, vem sofrendo cortes sistemáticos no orçamento que prejudicam a temporada anunciada. Enquanto isso, perdemos grupos menores, é o triste exemplo a Orquestra Sinfônica de São José dos Campos.
A velha jura de utilizar a verba em áreas “mais importantes” foi intensificada mais uma vez. Um velho argumento comprovadamente eficiente em descer a garganta de um grande número de contribuintes, ainda que os setores ditos “mais importantes” continuem, ano após ano, a sofrer com a falta de recursos e a protagonizar a propaganda política de todos os partidos. Parece estranho que todos os valores transferidos do mísero orçamento da cultura, somados a todas as promessas e anúncios oficiais de investimento em saúde e educação nunca sejam suficientes para retirar esses serviços públicos da situação precária em que figuram sistematicamente. Falhe em prevenir e curar, depois falhe em educar (sufocando a cultura, imprescindível ferramenta de instrução): uma receita básica para eleição.

Chorem pela Banda Sinfônica, sim! Mas conjuntamente lutem pela memória dela. Todos nós: músicos, artistas plásticos, escritores, dançarinos, artesãos, leitores, ouvintes, intelectuais ou não, apreciadores – todo aquele que gosta de arte, todo aquele que ainda vai descobrir como é impossível viver sem ela. O cidadão que conserva sua cultura mantém sua história viva, lembra-se do passado para diminuir seus erros no futuro e cria para si e para o próximo a sociedade em que gostaria de viver. Gosto de redobrar a atenção quando ouço uma peça, mas no momento encosto meu ouvido ao lado da sala de concerto e apuro minha audição – escuto silêncio.  







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